Como se atravessa uma ponte, de regresso ao que, para sempre e inexoravelmente, deixou de ser? Como voltar agora ao caminho tranquilo dos livros ‘normais’, depois de dias e dias passados em fascínio, do outro lado? Depois de ter permanecido padecido perecido, lá onde cada linha é um desafio, um mergulho, um salto no escuro; um ser-se - apaixonadamente; um descobrir-se, desabituado de uma linguagem que nos sacode, e que adivinhamos Lugar, e Nascimento. Construção absolutamente nas margens, e ainda assim perceptível. Revolucionarizante, e apesar disso coerente de códigos e regras.
É assim. Há Autores que nos renovam e nos agitam. Que irremediavelmente nos desassossegam. Que nos fazem, também, sentir pequenos, pequenos, pequenos. Este é Um e chama-se Valter Hugo Mãe.
Dele quis ler “o apocalipse dos trabalhadores”, que li recomendado pelo escritor João de Melo como ‘um livro excepcional’. Esgotado, em toda a parte. Do Autor encontrei então um outro romance, edição de bolso com letra de tamanho minúsculo, mesmo assim irrecusável: “o remorso de baltazar serapião”, ganhador, em 2007, do prémio José Saramago, que o apelida de ‘tsunami’. Citando esse outro Grande Transgressor: «Este livro é um tsunami, não no sentido destrutivo, mas da força. Foi a primeira imagem que me veio à cabeça quando o li. […] Tem de ser lido, porque traz muito de novo e fertilizará a literatura.»
Não vou desvendar enredos, nem deter-me em análises pessoais. Não vou, sequer, referir Cortázar, ou a literatura africana de expressão portuguesa, como influências que, a espaços, me parece descortinar. Deixo-vos com dois excertos, para que possam ajuizar sozinhos, para que (confio ..) em deslumbramento vos cresçam apetites inadiáveis:
« […] nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam. ele é sarga, é dos sargas cara chapada. nada éramos os serapião, nome da família, e já nos desimportávamos com isso. dizia o meu pai, o povo simplifica tudo e a nós vêem-nos com a vaca e lembram-se dela, que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos identificarem. a vaca era a nossa grande história, pensava eu, como haveria de nos apelidar a todos e servir de tema de conversa quando perguntavam pela mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça, sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o nosso disparate de ter um animal tão tratado como família, e não entendiam muito bem. […]»
«[…] aproximei-me dos dois, grande e imbatível como uma pedra de ódio construída no exercício do meu bom amor, e me pus diante deles tão pequenos. afastaram-se da minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou. a sarga mugiu de modo lancinante. e eu abati-me sobre os dois abrindo lado a lado os braços de punhos fechados. um só golpe certeiro sobre as suas cabeças. um só golpe com a violência da pedra mais furiosa do mundo. sobraram no chão como mais nada ali estivesse. […] »
Notas:
Esqueci-me de dizer: Valter Hugo Mãe não usa maiúsculas – em nada, alegadamente por achar não serem algumas palavras mais importantes que as outras. Mas isso é, apenas, um pormenor, e absolutamente despiciendo.
- tem uma página web, onde se pode ler uma autobiografia deliciosa: aqui
- um blogue: casadeosso
- está também aqui, juntamente com outros dois prémios J. Saramago
al
4 comentários:
Prof Ana,
valeu a indicação desse autor, e também dos blogs.Fiquei com imensa vontade de ler.
obrigado.
mas já me viram bem a mestria deste relato, do contar a morte da Ermesinda?:
«.. imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou.»
por que não põem comentários aqui, niños? eu, que fiquei absolutamente fascinada com a escrita do sr, acho que 'it's an injustice'..
al
só para deixar um abraço e acusar a leitura deste post. muito obrigado pelo cuidado e pela atenção.
beijinho e obrigado
uau, ter aqui o Autor em pessoa!! este blogue acaba de encher-se de brios!!
bjinho e .. eu é q agradeço, muito!
al
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